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MI CASA... SU CASA...

"Toda noite de insônia / Eu penso em te escrever... // Escrever uma carta definitiva / Que não dê alternativa pra quem lê... // Te chamar de carta fora do baralho / Descartar, embaralhar você..."

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Démodé

Ela sempre achou que tudo se colocava no papel. Sempre foi do tipo que escreve cartas, bilhetes espalhados para serem lidos em momentos aleatórios do dia corrido. Do tipo que desenha sorrisos atrás das contas a pagar, que coloca trechos de música entre as anotações da faculdade.

Quando menina, tinha um caderninho com cheiro de morango que nunca emprestava. Escrevia seus sentimentos ali, fantasiava o que diziam que ela ainda iria sentir. Ela tinha uma série de perguntas prontas, às quais respondia vez ou outra, como se assim pudesse capturar suas nuances. Ela sempre soube que iria mudar, e achou que conseguiria perceber quando acontecesse.

Mas ela acreditava que a visão que tinha de amor era única e que se manteria. Foi criada para acreditar em contos de fada, em finais felizes. Sua princesa favorita encontrou o amor verdadeiro e uma biblioteca; e é claro que ela relevou toda a magia e objetos falantes. Ainda assim parecia real, e podia acontecer para ela.

Seu primeiro amor foi o melhor amigo. Aquele que brincava com ela como um igual, com quem ela ria - os olhos verdes que ela nunca esqueceu, e que sempre pareceram sorrir. Ela sempre gostou de olhos que sorriem. Ele a beijou na escola, aquele beijo que ela esperava desde "Meu Primeiro Amor", e que carregava tanto carinho. Eles se desencontraram depois.

Então, na bagunça do adolescer, teve aquele menino implicante de quem ela fugia. Que ela achava meio bobo, que falava dela com um brilho nos olhos que chegava a cegar. E que a venceu pelo cansaço. Ele foi provavelmente o primeiro sobre quem ela escreveu. Porque ele fez o ciclo completo: desconhecido - colega - amigo - primeiro pedido de namoro - amigo - colega - desconhecido. Ele tinha olhos de jabuticaba.

O segundo pedido não foi de nenhum rapaz. Foi de uma mãe, e o filho era bem promissor; um candidato a príncipe encantado. Ela nunca escreveu sobre ele, mas tinha uma caixa de bilhetes trocados como um segredo, que contavam aquela história através das perspectivas dos dois. Mas ela jogou tudo fora quando alguns bilhetes foram lidos por outra pessoa. Alguém maculou aquela pureza e, no final, cada um seguiu seu caminho com a lembrança de um beijo que não se concretizou. Ela nunca perguntou se ele pensava naquela tarde.

Ela fingiu esquecer e seguiu em frente. Acha que "era julho de 86" quando todos seus sonhos romantizados esbarraram na realidade. Não que ela não tenha gostado; foi muito melhor do que ela imaginava. Ela não lembra de uma característica específica, olhos ou sorriso. Mas ela nunca se esqueceu do gosto: era de liberdade. Ela era uma menina, mas ele parecia um homem. E enquanto ela escrevia, ele cresceu. Casou-se e teve uma filha.

A música na época era "Because of You", seu sorriso era metálico e a timidez que desenvolveu ainda não dava sinais de aparecer. Ela distribuía abraços de "bom dia", e tinha um apelido carinhoso para cada amigo. E beijou um amigo dos amigos dela só porque estava de ótimo humor. Eles ficaram juntos o resto do dia, e na manhã seguinte o sorriso que ela deu na foto foi capturado no momento exato em que ele apareceu naquele teatro - o cheiro de Malbec ainda é todo dele. Ele a pediu em namoro e ela aceitou. Mas se perguntarem agora, ela diria que ele era só casual. Quatro anos de casualidades.

O único que ela chamou de namorado nem sequer foi o próximo para quem ela disse sim. Ela estava tão acostumada a escrever, que achava que algumas palavras não valiam tanto se fossem apenas ditas. E ela não se importou em dizer coisas que o machucaram, porque tinham dito a ela que o tempo curaria tudo. A ametista que ele deu a ela - lasca do mineral que ele guardava como amuleto - ficou para sempre guardado no medalhão que ela usava. Ela sempre foi do tipo que gostou de ter evidências físicas de um "quase amor".

Mas quando o amor realmente veio, não deixou nada a que se apegar. Ele ainda deve ter o CD, mas todos os corações de origami e todos os "eu te amo" que ela disse na vida já devem ter ido para o lixo há anos. A música que ficou foi "Thinking of You", que ela só conheceu depois que ele partiu. Quando partiu o coração dela. E dissipou qualquer vestígio de seus sonhos infantis. Ela nunca mais viu a covinha do sorriso, e tentou coloca-la em todos os seus textos à partir de então.

Ela brincou com os sentimentos do próximo, achando que assim apagaria o fato de que haviam brincado com os seus. Começou a renegar a ideia do amor. A criar muros onde antes ela via pontes. Não havia mais espaço para a princesa do conto de fadas; os vilões começaram a fazer mais sentido. Mas a professora de português disse que seus textos eram bons ("sua mãe sabe que você escreve isso?!"), e ela nunca mais parou. Viveu à partir deles.

Então ela começou a separar - embora negue que foi ali - os homens sobre os quais escreveria e com os quais se envolveria. Misturou as coisas em raríssimas vezes. Os príncipes foram feitos para serem escritos, eles não funcionariam juntos na vida real. Óscar, Michelangelo, Escobar... foram codinomes de homens que ela idealizou. O nome de grafia errada ela nunca escreveu. O nome que pareceu certo ela quer esquecer.

Os ingressos daquela sessão de cinema ela guardou. Dentro da capa de um filme que ela queria ver com ele. Ela se pergunta o que desaparecerá primeiro: se a tinta daquele papel, ou o sorriso de sua memória - torce para que seja o segundo (a tinta é o prazo que ela delimitou). Mas o beijo no rosto vai ficar para sempre; soou como um último adeus da primeira pessoa em anos que ela misturou em palavras e sentimento (pareceu aquela única despedida que ela nunca esqueceu). Todos os textos foram uma despedida gradual, porque a ideia de um "até logo" parecia natural.

Agora parece ensaiada. Premeditada.

A versão da bruxa má para o "e foram felizes para sempre".




E este texto é para sua amiga, que pediu carinhosamente que ela escrevesse sobre si mesma.
Mas como separar uma história que é a soma de todas as outras?

No final, sempre será mais do mesmo.

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